tristeza

Minha tristeza é o seu diagnóstico

A educação é o próprio processo de se saber educando; se atualmente se diz que as escolas (e as famílias) não conseguem educar as crianças é por que não lhes há práticas de educação libertárias, mas sim práticas prescritivas que educam (ver sobre a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire). Os jovens compõem jeitos de ser novos e a escola diz que estão desviados daquilo que se espera (QUEM?) deles. Logicamente que essa instituição maior, a Educação, possui, em sua bagagem, discursos que há muito ultrapassaram essa sua característica, a prescritiva, que existe desde a educação nos moldes do aprendiz medieval à educação moderna, nos moldes escolares (Ariès). As práticas prescritivas compõem as relações de dominação, de tutela, de colonização. A prática médica e a prática psicológica são prescritivas, talvez não em suas formações (levando em conta suas raízes filosóficas) e nem em suas totalidades, mas são hegemonicamente prescritivas como a prática pedagógica o é, todas ortopédicas. Todas elas, a pedagógica, a médica e a psicológica misturam-se em seus discursos. Os discursos servem para manter relações estabelecidas em cima de interesses particulares como o foi, por exemplo, a relação entre professor e aluno nos moldes de ignorante e sábio.

As relações pedagógicas se propõem, atualmente, libertárias, ou seja, que desenvolvem a autonomia e a capacidade crítica das pessoas. Na prática, as escolas não conseguem fazer isso por inúmeros motivos que não cabem nesse insight. O que me atento aqui é acerca da idéia: “As escolas geram doenças”. Como assim?

No meio da crise atual da Educação (sucateamento, crise paradigmática e etc) a escola busca se orientar em referenciais mais técnicos e objetivos. Não só a escola faz isso; dividir a complexidade da relação humana (como o é a relação de ensino) é o carro chefe da modernidade; tornar técnica tal prática é a roda do carro. Nisso não há mal nenhum, pelo contrário, a tecnologia, o tecnicismo produz façanhas pró-vida. Nesse processo as escolas procuram, portanto, referenciais técnicos para dar conta de sua falência. Para dar conta de uma das facetas da falência, a relação estudante-professor, usa do discurso médico. O TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) está na boca dos professores e nas guias de referências que as escolas encaminham às clínicas psicológicas que por sua vez também usam da expressão mais do que discutem inconsciente ou comportamento. É bonito identificar o TDHA – existe uma estética por detrás do ato; o discurso é o que liga o ato ao bonito, é a lataria do carro, é a sua estampagem, aquilo para o qual as pessoas olham e definem se belo ou não. Aceitável se belo e belo se aceitável.

É as ciências positivistas aplicadas à arte, com o discurso da simetria, portanto de medidas, que vai dizer que belo se aceita, feio não. Além de bonito, mesmo que falaciosamente, é ainda a solução de todos os problemas da escola, do educando, do educador e dos próprios psicólogos – nos alimentamos das palavras. O ato de ensinar e também o de cuidar, são deixados num plano de menos importância, como se as palavras, elas apenas, fossem cuidar e ensinar. O corpo se retira disso. Nem mesmo se precisa das cordas vocais para se definir o funcionamento dos corpos…os livros e os olhos os fazem. Não advogo o fim da psicologia, uma vez que usamos essencialmente (e não exclusivamente) da palavra para cuidar (pelo menos em tese – onde estão os terapeutas corporais?). Isso tudo não é novo. Trata-se de um processo que ocorre desde o surgimento da Saúde Pública, com a criação da figura do inspetor escolar, ocupada, na Inglaterra do século XVIII e XIX, pela figura do médico. Trata-se, pois, do processo de medicalização, do enraizamento do discurso das ciências métricas (não só da medicina) encarnado no conceito de doença ou de psicometria.

Mas, por que a aplicação de instrumentos extremamente importantes e norteadores de cuidado, um diagnóstico e a testagem psicológica, trás conseqüências danosas como o uso desnecessário de medicações (com efeitos colaterais potentes) em crianças de menos de 4 anos (e talvez essa seja a consequencia menos grave!)? Por várias condições. Uma delas eu creio que seja pelo fato de tal uso do aporte técnico da medicina e da psicologia (naquilo que ela trás daquela e naquilo que por si só já produz) ocorrer de forma corriqueira, mal usada, à boca pequena, como a um telefone sem fio, desviado de como nasceu, passando-o à frente e pronto (é mais fácil), resolvem-se os problemas relacionais. Até sei que, num primeiro momento incorro no mesmo modo que por aqui escrevo e critico, pois se deixou no ar da escrita que há um jeito certo de fazer, por exemplo, a psicologia e que eu o sei. Defendo sim que há jeitos certos de fazer psicologia, talvez eu saiba um ou outro, mas a questão que critico não é acerca de um certo conhecimento que se usa instrumentalmente, mas quando e onde se usa tal aparelhagem, independente dos discursos a ela emparelhados. A psicologia hoje, ao passo que critica a medicina pela medicalização, faz a psicologização. Os psicólogos são a bola da vez; dizem sobre tudo nos noticiários de rádio e TV. Dizem de tudo a toda hora, explicando, com ar demonstrativo (como se deduzem as fórmulas matemáticas), todos os comportamentos que a mídia diz ser anormal. Servimos à mídia.

Assim talvez eu dissolva a contradição. Se não, prossigo assim mesmo. Voltando ao tema principal, o que me chama a atenção é tornar em problemas técnicos os problemas relacionais e os problemas conjunturais (e a psicologia, mesmo que sustentada no conceito de subjetividade, faz mais isso do que outra coisa). Quando a escola diagnostica (e é isso que ela faz – o psicólogo está lá é para isso, na prática, mesmo que em tese para outras coisas) ela torna técnico o problema relacional entre educando e educador, deixando de lado a conjuntura da relação que vai desde o humor diário das pessoas diretamente envolvidas na relação ao sucateamento do ensino público. Para esse sucateamento não há remédio, mas sim transformações culturais. Sei que é etéreo defender isso, mas é uma forma de me referir a algo que me escapa da possibilidade e habilidade de definir e defender, mas que o tento à maneira fenomenológica (o que escrevo é sobre o que vejo no mundo e a ele tento definir [talvez o certo seria pousar minha caneta e me silenciar – é o que faço muitas vezes, nas pausas da minha escrita queixosa; nesses tempos angustio-me e me volto ao pouco e limitado que faço {falo da minha prática profissional} e, nesse instante, acho muito, para, depois, achar pouco e voltar a escrever]).

Tentando arrematar a questão: o sucateamento se trata de um problema relacional e não técnico. Trata-se de tantas relações, dentre elas da relação que todos nós fazemos com o público. Tal relação é quase que estritamente técnica, desinvestida de afeto, pois o afeto é quase que eminentemente privado. O afeto é a tal ponto privado que nem dentro de casa está mais, mas sim investido apenas no pensamento de cada um de nós; estamos preocupados com o nosso pensamento, cada um com o seu; quando é com o do outro que preocupamos é para ver se nele há referências ao nosso, sem troca, contudo. Mudamos nosso pensamento; pensamos demais. Mas não mudamos nossos afetos, nossa afetação. Por quê?

Nosso afeto está virando um calo. As células vivas por debaixo do calo deprimem; alguns calos criam pus e extrapolam a carapaça, em pânico, pois sem ar. A depressão é a porta-bandeira do século; o pânico e congêneres formam a bateria. O afeto é, pois, diagnosticado – o calo é doença, um tumor em potencial – o ato médico desempregará as pedicuras. Por isso não mudamos o afeto – pois ele já está diagnosticado – não se muda uma doença, trata-se apenas; e elas, as doenças do afeto, com suas micro-mutações, especializam-se. Temos que apenas medicá-las – se medicamos, não aprendemos e não ensinamos; prescrevemos o prescrito. A escola não ensina, diagnostica; a indústria farmacêutica medica. O médico, o psicólogo e o professor discursam; as crianças tentam situar-se no mundo que dá vertigens e aprendem a diagnosticar (até que enfim um aprendizado no contexto todo!).

Pela prática clínica na psicologia, vejo que o número de crianças encaminhadas com o diagnóstico “portadores de TDAH” cresce muito. Dessas, boa parte (não vou arriscar uma porcentagem) não apresentam dificuldades de focar a atenção, tão pouco agitação comportamental “fora do controle”; conseguem muito bem planejar ações e brincadeiras, mesmo que tais brincadeiras e ações não estejam nos planos dos pais e da escola. Disso concluo que a escola cria doenças. Já visitei uma escola em que seis crianças de uma mesma turma (de 4 a 7 anos) tiveram todas as despesas pagas pela diretora, com consentimento dos pais, sem acionar a rede de saúde local, para viajar 70 quilômetros e passar por uma consulta de uma neuropediatra; todas foram medicadas com metilfenidato. Todas as crianças, do contato que com elas tive, do meu ponto de vista, não “portavam” TDAH. Demandavam atenção e limites importantes, pois agressivas – todas elas com pais que serviam como bons exemplos de agressão em casa – elas aprendiam muito bem e demandavam os limites que as crianças demandam desde há muito tempo atrás! Quer evitar que seu filho seja agressivo, sendo agressivo?!?! O que é? Está pensando que beiço de jegue é arroz doce? (expressão que aprendi em minhas viagens à Bahia e que diz tudo). A despesa com a viagem, consultas e medicação pareceu, à diretora, menor que a energia gasta para se trabalhar com tais relações. O motivo pelo qual a professora não procurou o serviço de saúde local foi o fato de que ela sabia que tal serviço não iria medicar as crianças, por tentativas anteriores. Poupamos energia psíquica e afetiva, apesar de ela ser renovável e limpa!

Quem propôs o marketing do metilfenidato não poupou energia psíquica e criou a “Droga da inteligência” – que sacada genial! – só esse termo abriu as portas de muitas escolas para a droga (será que quem cunhou a expressão tomava a droga?). Ela dá a inteligência e de quebra o efeito-zumbi. Aliás, essa figura ímpar, o zumbi, é bastante querido na juventude atualmente, nos games, filmes e até fantasias…tem que ser! Quem curte a cultura zumbi é da geração metilfenidato.

Enfim, estou triste e é esse o meu insight.

É esse o meu diagnóstico.